sábado, 4 de abril de 2009

O novo Código de Ética Médica

O infeliz adoece e telefona para marcar uma consulta. O “convênio” (eufemismo para plano de saúde) só é atendido duas vezes por semana, e nas próximas oito não há horários. Temendo morrer antes de ser atendido, o desvalido aceita.
Quando chega o dia, já não percebe qualquer sintoma. Vai porque marcou e, afinal, pode ser alguma doença indolor. Mandam esperar. Há uns trezentos e vinte doentes espremidos na salinha, olhos vazios à televisão que exibe desenhos animados e madames cozinhando. Crianças choram, velhos dormem, e vice-versa. As revistas, rasgadas, comidas, são vetustas: uma capa anuncia o apagão elétrico de FHC. E por que sempre a maldita Veja?
Hora e meia depois, chamam. O médico é um grosseirão à paisana, dedos sujos, barba por fazer, bafo, cabelos desgrenhados. Manda sentar, mandando mesmo, como se anunciasse um bofete. Finge que ouve as queixas do incauto, não faz qualquer pergunta, rabisca uma receita em garranchos ilegíveis e levanta-se. Acabou.
O desrespeito é a regra do atendimento fornecido pelos planos privados. Nem todas as especialidades são cobertas, clínicos gerais “atendem” quase todo tipo de emergências nos hospitais, os funcionários são brucutus, muitos consultórios não possuem condições de higiene ou conforto, as enfermeiras parecem torturadoras medievais e os médicos… serão de fato médicos?
Claro, há o risco da generalização irresponsável. Mas, em se tratando de assunto tão delicado, uma simples ocorrência dessas já seria inaceitável; e, convenhamos, não se trata de infortúnios isolados. Alguém ponderaria, prenhe de razão, que o sistema público de saúde é imensamente pior. Sim, também pagamos por ele. Só que um absurdo não anula o outro.
Planos privados baseiam-se justamente na presunção da inviabilidade da alternativa estatal. Arrecadam quantias assombrosas para estabelecer relações de consumo com seus clientes, dividindo direitos e obrigações contratuais, submetidos a regulação e fiscalização. Mas, na vida real, transformam as contrapartidas legais em deveres unilaterais exclusivos do paciente. Administradores, médicos, laboratórios, clínicas e hospitais arvoram-se as prerrogativas mais variadas, inclusive aquelas que põem em risco a vida e o bem-estar do idiota que os financia. Ele que esteja em dia com os pagamentos, senão pode morrer num corredor qualquer.
Muito poderia ser feito para refrear o descaso. Eis um exemplo tímido: exigir que os médicos lavrem pareceres após toda consulta. Não precisaria ser um tratado; bastariam algumas palavras num pedaço de papel, o mesmo que encaminhará exames ou prescreverá o medicamento. Esse mísero comentário serviria como documento para coibir diagnósticos estúpidos ou preguiçosos, além de possibilitar ao paciente leigo a comparação com outras avaliações. E note-se que ninguém está exigindo que as receitas sejam impressas, datilografadas ou algo assim. Aliás, pensando bem…(*rsrsrsrs)
Restaria ao cidadão fazer suas contas e decidir entre ser lesado como consumidor ou como contribuinte (e, garanto, uma das alternativas parecerá menos onerosa, inútil e frustrante). Acontece que grande parte dos usuários recebe o convênio como benefício de seus empregadores, não podendo, portanto, mudar de plano quando quer. Geralmente nem reclamam, temendo parecer ingratos ou insubordinados. E os Procons negam-se a reconhecer esse relacionamento como questão de sua alçada, pois afirmam que apenas a empresa contratante pode reivindicar a observância contratual.
O corporativismo (*essa prática deveria ser proíbida por lei) da classe médica parece imbatível graças à força dos mil lobbies em ação no Congresso. Como toda guilda poderosa, os Conselhos de Medicina impedem qualquer legislação específica, alegando que um certo código de ética seria suficiente para coibir desvios de conduta. Balela, evidentemente. A última coisa de que um doente lembrará será enfrentar burocracia e humilhações para submeter profissionais ao julgamento de seus semelhantes.
Não chega a surpreender que uma revisão no Código de Ética Médica esteja sendo empreendida na surdina, sem divulgação pela imprensa ou qualquer discussão pública. A página Portal Médico informa sobre o assunto e possibilita alguma participação do público (http://www.portalmedico.org.br/modificacaocem/index.asp). Se podemos nos apegar ao pouquíssimo que nos resta, este é o momento de inquirir e pressionar os revisores – mesmo que depois só exista o consolo da vã tentativa.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela, 2006), entre outros. Colabora regularmente com a revista Caros Amigos e a página do Le Monde Diplomatique Brasil. Mantêm um blog sobre cultura, política e atualidades: http://www.guilhermescalzilli.blogspot.com/.
* O texto em verde foi escrito por mim, não consta da matéria original.
Salète Lemos

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