domingo, 15 de junho de 2008

'Me sinto orgulhosa de ser sua filha', diz Aleida Guevara


O lendário revolucionário Che Guevara costuma ser visto como um lutador social, mas pouco se sabe sobre sua vida familiar.
Durante uma visita a Cuba, em 2006, o repórter Fernán González, da BBC Mundo, conversou no Centro de Estudos Che Guevara, de Havana, com Aleida Guevara March, uma das filhas de Che.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC - Como você se lembra de seu pai?
Aleida Guevara March - Tenho muito poucas lembranças. Realmente cuido delas, as protejo. O que acontece é que se alguém fica repetindo as coisas, é como se perdessem sua magia, essas coisas lindas que um dia quero contar aos meus netos, quando os tiver. E isso, para um filho, é importantíssimo.
O seu pai pode não estar presente na sua educação, sua formação como ser humano. No entanto, minha mãe, que nos amou extraordinariamente, fez com que o sentíssemos aqui, ao nosso lado, o tempo todo.

BBC - Como você viveu a ausência dele?
Aleida - Quando estávamos crescendo, quando já era adolescente, um dia me perguntei por que amo meu pai, já que o amor dos pais não é imposto - não é porque você é meu pai que vou gostar de você. Você precisa ganhar este afeto do filho, o respeito de seu filho.
Meu pai não teve tempo de fazê-lo pessoalmente. Então eu disse, "bom, por que gosto dele". Comecei a puxar pela memória. Comecei a buscar imagens que tinha de relações com papai e me dei conta de que esse homem havia me amado. Quando alguém recebe amor, devolve.
Depois, comecei a estudar papai, como era como ser humano, e todos os dias me sinto muito orgulhosa de ser sua filha.

BBC - Que idade você tinha quando seu pai foi lutar na Bolívia?
Aleida - Ele foi primeiro ao Congo. Eu tinha quatro anos e meio. Nunca mais voltamos a vê-lo como era. Ele voltou clandestinamente a Cuba. Pediu autorização a Fidel, já que já havia se despedido publicamente do povo cubano. Fidel permitiu tudo.

BBC - Você o viu quando ele voltou?
Aleida - Eu o vi já transformado. Ele voltou. Aqui passou por um sério trabalho de transformação para poder entrar depois na Bolívia. Quando ele estava pronto para sair, então fomos comer com um amigo de meu pai. Foi fantástico, foi um encontro lindíssimo.
Essa noite, desgraçadamente, caí, bati com a cabeça, nós tínhamos acabado de jantar. Meu pai me pegou nos braços, me tocou de uma maneira muito especial a ponto de eu dizer para minha mãe imediatamente: "Acho que este homem está apaixonado por mim".
Eu tinha cinco anos nesta época. Esse homem me protegeu de maneira muito especial. Na época negaram que ele fosse meu pai, então, só me restava acreditar que ele estava apaixonado por mim. E foi lindo, muito emocionante porque, talvez, ele quisesse expressar como me amava.

BBC - Depois veio o momento difícil em que você foi informada sobre a morte dele, na Bolívia. Como foi isso para você?
Aleida - Nunca me deram a notícia assim, "seu pai morreu". Nunca me lembro disso. Lembro de minha mãe chorando e lendo a carta de despedida e aí entendi que nunca mais ia ter meu pai. É um sentimento muito difícil para uma criança pequena aceitar esta realidade.
Depois senti falta dele. Senti falta de meu pai porque na escola as meninas contavam coisas de seus pais, das relações com seus pais, e eu não podia. Então, busquei outra figura para substituí-lo, e ao pobre Fidel coube o trabalho.

BBC - Seu pai se converteu em um dos ícones deste tempo. O que você sente quando vê um jovem norueguês, espanhol ou turco com a imagem de Che Guevara?
Aleida - Às vezes me dá vontade de rir. Penso nele. Um dia ele estava em casa - isso me contou uma amiga de minha mãe - e havia muitos jovens que tinham vindo de uma zona rural do país e estudavam com bolsas. Eles sabiam que meu pai passaria por ali e quando iam almoçar ou comer, diziam: "Faca, colher, que viva Che Guevara" (que, em espanhol, rima).
Meu pai, quando ouvia, morria de rir, dizia "que bobagem". Era uma coisa engraçada para ele. Penso o mesmo quando vejo uma imagem de papai reproduzida em milhares e milhares de camisetas usadas por jovens. Penso o que diria este homem ao ver-se assim.

BBC - E o que você pensa da globalização de sua imagem?
Aleida - Meu pai é de origem argentina, lutou no Congo, se desenvolveu em Cuba, morreu na Bolívia. E na Índia, um lugar tão longe, no Japão, há um respeito e uma admiração extraordinária por sua figura.
Então você diz, esses são os homens que demonstram que a morte não é determinante, não é absoluta quando se consegue fazer bem a obra da vida, como dizia Martí.
Quando você fez o melhor como ser humano, continua assim, relacionado a essa gente. A gente não gosta quando vê a imagem de meu pai em um jeans, nas nádegas, no bumbum de uma pessoa.
Mas a gente gosta de vê-la quando está em combate, em ação, no peito de jovens que as vezes não sabem nem quem era esse homem mas, de alguma maneira, poderão ir buscando informações e se perguntar "por que o usamos?". Isso será positivo. Simplesmente responder essas perguntas será positivo.

BBC - No entanto há aqueles que dizem que é incongruente o ideário de Che com o mercantilismo de sua imagem.
Aleida - Nós, por exemplo, quando o vimos em uma ótica alemã, em Berlim, numa propaganda de óculos... é uma falta de respeito total a sua figura, a sua ideologia. Quando um estilista de origem brasileira que mora em Nova York organiza um desfile de roupa íntima com a imagem de meu pai (referência a um biquíni criado pela Cia. Marítima), para a gente parece uma falta de respeito absoluta.
Infelizmente, no mundo capitalista em que vivemos sempre vai haver um vivaldino que vai se aproveitar deste amor, deste culto, deste respeito, para explorar as pessoas e arrancar dinheiro. É assim.
Quando esta imagem se explora do ponto de vista social, quando vai para uma causa justa, a gente não se importa. Ao contrário, nos parece muito bom, mas quando está nas mãos desses senhores capitalistas que somente buscam enriquecer, explorando uma figura como a dele, não vamos estar de acordo.


Fonte:http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/10/071005_chefilha_ba.shtml

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